Fugindo um pouco do foco principal do Blog, compartilho um texto sobre a violência na história.
Alguém que afirme que os últimos 100 anos foram os
mais pacíficos da humanidade certamente não conhece história. Não sabe dos 55
milhões de mortos da Segunda Guerra Mundial, do extermínio de 6 milhões de
judeus no Holocausto e do brutal desaparecimento, entre 2003 e 2010, de pelo
menos 300 mil pessoas na guerra civil de Darfur, no Sudão. Isso sem falar do
terrorismo, que, apenas neste século que se inicia, já matou milhares nos
Estados Unidos, na Europa e em dezenas de países da Ásia e do Oriente Médio.
Se isso tudo parece distante, ainda há a violência
urbana: os moradores das grandes metrópoles se sentem crescentemente assediados
por vândalos, assassinos e ladrões.
A sensação de que a violência permeia nossa vida
(reforçada pelo fato de que vivemos cercados de policiais ou seguranças)
desafia qualquer um a defender o pacifismo, ainda que relativo, dos últimos 100
anos.
O psicólogo canadense Steven Pinker não é tolo nem
ignorante, mas se lançou à tarefa de demonstrar que o mundo nunca foi um lugar
tão seguro para viver.
Professor da Universidade Harvard, nos Estados
Unidos, Pinker é um dos acadêmicos mais festejados da atualidade e um dos
autores de divulgação científica mais bem-sucedidos do mundo. Em seu novo
livro, lançado na semana passada nos EUA, ele usa mais de 800 páginas para
afirmar, entre outras coisas, que o banho de sangue da Segunda Guerra Mundial e
a epidemia de violência atual, causada pelo crime urbano, são distúrbios
estatísticos.
Em The better angels of our nature: why violence
has declined (algo como Os melhores anjos da nossa natureza: por que a
violência declinou), ainda sem tradução no Brasil, essas grandes tragédias
são reduzidas ao status de exceções.
A noção de que o século XX foi o mais violento da
história é descartada como um erro de percepção. “As estimativas que temos
sobre as mortes nos séculos anteriores, quando calculadas como uma proporção da
população mundial daquele período, mostram que pelo menos nove atrocidades
anteriores ao século XX parecem ser bem piores que a Segunda Guerra Mundial”,
diz Pinker. “Estamos falando do colapso de impérios, das invasões de tribos
montadas, do tráfego de escravos e da aniquilação de povos nativos com
inspiração religiosa. Nessa lista, a Primeira Guerra Mundial nem está entre os
dez eventos de maior mortalidade da história.”
Pinker, um judeu canadense de 57 anos, casado pela
terceira vez, é desses intelectuais que ganham fama graças a sua capacidade de
traduzir, para o grande público, ideias complexas que se tornam correntes no
meio acadêmico. Ele escreve espetacularmente e sabe escolher temas que desafiam
verdades estabelecidas. Por isso consegue muita repercussão.
Em livros como Tábula rasa (Companhia das
Letras, 2004) e Como a mente funciona (Companhia das Letras, 1998),
Pinker defende, como psicólogo evolucionista, a ideia de que boa parte de nosso
comportamento é herdada dos tempos das cavernas. Ele não nega a importância da
vida em sociedade e da educação para moldar os costumes humanos. Mas advoga a
existência, dentro de nosso cérebro, de um núcleo primitivo e instintivo que
nos empurra ao reino animal – esse núcleo tem de ser vigiado e controlado
permanentemente, sob o risco de incorrermos de novo na barbárie.
A racionalidade e a empatias são responsáveis por
domar o animal em nós e constituem os “melhores anjos da nossa natureza” que
dão título ao livro – uma imagem extraída de um discurso em que o presidente
americano Abraham Lincoln (1809-1865) apelava, inutilmente, aos sentimentos
pacifistas de seus concidadãos.
Para sustentar a tese de que nunca se matou tão
pouco na história, Pinker muniu-se de dados que sugerem a tendência cada vez
mais pacífica da humanidade. Os cálculos, na maior parte das vezes, são
emprestados de outros especialistas, como do criminologista europeu Manuel
Eisner.
Pesquisando em arquivos históricos, Eisner
constatou que as taxas de homicídios em países da Europa têm caído século após
século. Na Londres do século XIV, a cada 100 mil habitantes, 50 morriam
assassinados. Hoje, a mesma estatística em Londres é de dois assassinatos por
100 mil. Na Europa como um todo, o número de mortes violentas por 100 mil varia
entre um e três.
Quanto mais se volta na história da humanidade,
mais impressionante se torna a comparação com o presente. O economista
americano Samuel Bowles, diretor do Centro de Ciências do Comportamento do
Instituto Santa Fé, procurou informações de todos os assentamentos humanos existentes
há cerca de 50 mil anos, quando éramos caçadores coletores. Bowles descobriu
que entre 14% e 46% das pessoas enterradas nesses lugares morreram de forma
violenta.
Examinando dados como esses, Pinker conclui que,
nas sociedades onde não havia um governo definido, como os povos bárbaros da
Idade Média, 15% da população morria em média de forma violenta. No século XX,
apesar das guerras e dos genocídios, apenas 3% da população teve o mesmo fim.
“Se as guerras do século XX fossem travadas nas condições das sociedades
tribais, 2 bilhões de pessoas teriam morrido, não 100 milhões”, disse Pinker
durante uma de suas palestras no TED, conferência internacional que reúne
pesquisadores e ativistas com ideias visionárias.
FORA DO PADRÃO
A nuvem radioativa produzida pela bomba atômica lançada pelos Estados Unidos em
Nagasaki, no Japão, em 1945. Na teoria de Steven Pinker, a Segunda Guerra
Mundial foi uma exceção no século mais pacífico da história.
Pinker afirma que nossa sensação de insegurança se
deve a uma ilusão causada pelo funcionamento de nosso cérebro. “Estimamos a
probabilidade de algo acontecer a partir da facilidade com que lembramos de
casos semelhantes”, escreve Pinker. “Cenas de massacre são mais marcantes que
as de pessoas morrendo de velhice. E hoje os massacres chegam até nós com
enorme frequência, por causa dos meios de comunicação.”
Parte da nossa ideia distorcida da violência seria
culpa do excesso de informação. Um estudo recente do professor Kalev Leetaru,
da Universidade de Illinois, analisou coberturas jornalísticas entre 1945 e
2011 e concluiu que o tom das notícias hoje é mais negativo e sensacionalista
do que era no passado. Os fatos destacados no noticiário seriam exceções – mas
se tornam inesquecíveis e moldam a percepção do mundo que nos cerca.
A explicação para a diminuição da violência, diz
Pinker, se resume à ideia de que as sociedades humanas avançaram em direção a
formas de governo racionais. Quanto menos organizado um grupo humano, diz ele,
maior a probabilidade de que indivíduos pratiquem atos de violência como forma
de resolver conflitos. Ao abraçar essa ideia, Pinker assume-se como discípulo
do filósofo britânico Thomas Hobbes.
Em seu livro de 1651, O Leviatã, Hobbes
argumenta que a natureza humana é tão sombria – “o homem é o lobo do homem” –
que instituições que controlem essa natureza são indispensáveis para a vida em
sociedade. Em sua ausência, restariam o caos e a destruição.
Por isso, o surgimento do Estado, capaz de
estabelecer normas e sistemas para regular o comportamento dos homens, seria a
base da pacificação da humanidade. Em seguida, se assentariam tendências
auxiliares como a urbanização, o comércio, a disseminação da cultura e, curiosamente,
a extensão da empatia. Esse sentimento, que no passado ligava apenas as pessoas
de uma mesma família ou de um clã, generalizou-se. Hoje, graças à leitura e à
cultura, somos capazes de nos identificar com gente de outra cor e de outra
religião, que vive do outro lado do planeta. A cultura ampliou o que Pinker
chama de “círculos de empatia”. Eles agora podem, potencialmente, abranger o
mundo todo – e ajudar a coibir o impulso da violência que ainda é parte de nós.
Embora a conclusão central de Pinker pareça incontroversa – existe uma
tendência de longo prazo rumo à redução da violência –, a lógica que ele usa
para chegar a ela pode ser contestada.
Pinker parece excessivamente voltado para o que acontece na Europa,
sabidamente o lugar mais civilizado e menos violento do mundo. “A violência
está aumentado em lugares como Caribe e África”, afirma o coronel José Vicente
da Silva, mestre em psicologia social pela Universidade de São Paulo e
secretário nacional de Segurança no governo Fernando Henrique.
Defrontado com índices de violência do século XIV em bairros negros de
Detroit e Nova Orleans, nos Estados Unidos (49 homicídios por 100 mil), Pinker
responde que essas áreas vivem de forma pré-hobbesiana, sem a presença
civilizatória do Estado.
Um crítico poderia argumentar, com os mesmos dados, que a violência
nessas cidades é parte integrante da sociedade que as produziu, onde barbárie e
civilização convivem lado a lado. A diferença entre uma abordagem e a outra
está no futuro que elas projetam.
Se Pinker estiver correto, a presença crescente do Estado e a ampliação
dos círculos de empatia farão do mundo um lugar cada vez mais seguro e
pacífico. Se ele estiver errado, o mundo civilizado, por suas próprias
deficiências, continuará produzindo lugares nada civilizados, onde o homem
seguirá sendo o lobo do homem.
Texto retirado de http://revistaepoca.globo.com/ideias/noticia/2011/10/mais-bonzinhos-do-que-nunca.html